"É uma Europa [s. XVIII] do enriquecimento coletivo, é uma Europa como sujeito econômico coletivo que, qualquer que seja a concorrência estabelecida entre os Estados, ou melhor, através da própria concorrência que se estabelece entre os Estados, deve tomar um caminho que será o do progresso econômico ilimitado. [...] É a uma mundialização do mercado que somos assim convidados [...]. Claro, não está aí, nessa organização, em todo caso nessa reflexão sobre a posição recíproca do mundo e da Europa, não está aí o início da colonização. Fazia tempo que ela havia começado. Não creio tampouco que esteja aí o início do imperialismo no sentido moderno ou contemporâneo do termo, porque sem dúvida é mais tarde, no século XIX, que se vê a formação desse novo imperialismo. Mas digamos que temos aí o início de um novo tipo de cálculo planetário na prática governamental europeia" (75-77,ênfase minha.)
"Se utilizo a palavra 'liberal', é, primeiramente, porque essa prática governamental que está se estabelecendo não se contenta em respeitar esta ou aquela liberdade, garantir esta ou auela liberdade. Mais profundamente, ela é consumidora de liberdade. É consumidora de liberdade na medida em que só pode funcionar se existe efetivamente certo número de liberdades: liberdade do mercado, [...]. A nova razão governamental necessita portanto de liberdade, a nova arte governamental consome liberdade. Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar portanto como gestora da liberdade, não no sentido imperativo 'seja livre', com a contradição imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o 'seja livre' que o liberalismo formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário para tornar você livre. Vou fazer de tal modo que você tenha a liberdade de ser livre. Com isso, embora esse liberalismo não seja tanto o imperativo da liberdade, mas a gestão e organização das condições graças às quais podemos ser livres, vocês vêem que se instaura, no cerne dessa prática liberal, uma relação problemática, sempre diferente, sempre móvel, entre a produção da liberdade e aquilo que, produzindo-a, pode vir a limitá-la e a destruí-la. O liberalismo, no sentido em que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de produção/destruição [com a] liberdade [...]. É necessário, de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc" (86-87).
"Logo, a liberdade no regime do liberalismo não é um dado, a liberdade não é uma região já pronta que se teria de respeitar, ou se o é, só o é parcialmente, regionalmente, neste ou naquele caso, etc. A liberdade é algo que se fabrica a cada instante. O liberalismo não é o que aceita a liberdade. O liberalismo é o que se propõe fabricá-la a cada instante, suscitá-la e produzi-la com, bem entendido, [todo o conjunto] de injunções, de problemas de custo que essa fabricação levanta" (88).
"Podemos dizer que, afinal de contas, o lema do liberalismo é 'viver perigosamente'. 'Viver perigosamente' significa que os indivíduos são postos perpetuamente em situação de perigo, ou antes, são condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente, seu futuro como portadores de perigo. E é essa espécie de estímulo do perigo que vai ser, a meu ver, uma das principais implicações do liberalismo. [...] Enfim, por toda parte vocês vêem esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo a condição, o correlato psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo sem cultura do perigo" (90-91).
"Eis a moldura histórica dentro da qual o que se chama de neoliberalismo alemão tomou corpo. [...] É diferente de um cálculo político, mesmo que esteja inteiramente permeado por um cálculo político. Tampouco é uma ideologia, embora haja, claro, todo um conjunto de ideias, de princípios de análise, etc., perfeitamente coerentes. Trata-se na verdade de uma nova programação da governamentalidade liberal. Uma reorganização interna que, mais uma vez, não pergunta ao Estado que liberdade você vai dar à economia, mas pergunta à economia: como a sua liberdade vai poder ter uma função e um papel de estatização, no sentido que isso permitirá fundar efetivamente a legitimidade de um Estado? (127).
"[...] Pois bem, dizem os ordoliberais, é preciso inverter inteiramente a fórmula e adotar a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do Estado, desde o início da sua existência até a última forma das suas intervenções. Em outras palavras, um Estado sob a vigilância do mercado em vez de um mercado sob a vigilância do Estado [...] Porque não há que se iludir: o neoliberalismo atual não é, de maneira nenhuma, como se diz muitas vezes, a ressurgência, a recorrência de velhas formas de economia liberal, formuladas nos séculos XVIII e XIX, que o capitalismo atualmente reativaria, por certo número de razões relacionadas tanto à sua impotência, às crises que ele atravessa, quanto a certo número de objetivos políticos ou mais ou menos locais e determinados. Na verdade, o que está em questão nesse neoliberalismo atual, quer se tome a forma alemã que evoco precisamente agora, quer se tome a forma americana do anarcoliberalismo, é uma coisa muito mais importante. O que está em jogo é saber se, efetivamente, uma economia de mercado pode servir de princípio, de forma e de modelo para um Estado [...]. Não se trata apenas de deixar a economia livre. Trata-se de sab[er até onde vão poder se estender os poderes de informação políticos e sociais da economia de mercado" (158-160).
"Ora, para os neoliberais, o essencial do mercado não está na troca, [...]. O essencial do mercado está na concorrência. [...] Pois bém, é aí que os ordoliberais rompem com a tradição dos séculos XVIII e XIX. Eles dizem: do princípio da concorrência como forma organizadora do mercado, não se pode e não se [deve] tirar o laissez-faire. Por quê? Porque, dizem eles, quando da economia do mercado você tira o princípio do laissez-faire, é que no fundo você ainda é prisioneiro do que se poderia chamar de uma 'ingenuidade naturalista', [...] Não é de modo algum um dado natural. A concorrência. A concorrência é uma essência. [...] A concorrência é um eîdos. A concorrência é um princípio de formalização. A concorrência possui uma lógica interna, tem sua estrutura própria. Seus efeitos só se produzem se essa lógica é respeitada. É, de certo modo, um jogo formal entre desigualdades. Não é um jogo natural entre indivíduos e comportamentos" (161-163).
[1939, 'Colóquio Walter Lippmann'.] "Esse liberalismo positivo é, portanto, um liberalismo intervencionista. É um liberalismo de que Röpke, na Gesellschaftskrisis, que publicará, aliás, pouco tempo depois do colóquio Lippmann, diz 'A liberdade de mercado necessita de uma política ativa e extremamente vigilante'. [...] Fórmulas que nem o liberalismo clássico do século XIX nem o anarcocapitalismo americano poderiam aceitar. Eucken, por exemplo, diz: 'O Estado é responsável pelo resultado da atividade econômica'. Franz Böhm diz: 'O Estado deve dominar e devir econômico. Miksch diz: "Nessa política liberal - essa frase é importante - 'é possível que nessa política liberal o número das intervenções econômicas seja tão grande quanto numa política planificadora, mas sua natureza é diferente" (182-184).
"Em particular, a política neoliberal em relação ao desemprego é perfeitamente clara. Não se deve de maneira nenhuma, numa situação de desemprego, qualquer que seja a taxa de desemprego, intervir diretamente em primeiro lugar sobre o desemprego, como se o pleno emprego devesse ser um ideal político e um princípio econômico a ser salvo em qualquer circunstância. [...] O pleno emprego, não é um objetivo, pode ser até possível que um quantum de desemprego seja absolutamente necessário para a economia. Como diz, creio eu, Röpke, o que é um desempregado? Não é um deficiente econômico. O desempregado não é uma vítima da sociedade. O que é o desempregado? É um trabalhador em trânsito. É um trabalhador em trânsito entre um atividade não rentável e uma atividade mais rentável" (191).
"População, técnicas, aprendizagem e educação, regime jurídico, disponibilidade dos solos, clima: tudo isso são elementos que, como vocês vêem, não são diretamente econômicos, não tocam nos mecanismo específicos do mercado, mas são para Eucken as condições em que será possível fazer a agricultura funcionar como um mercado, a agricultura num mercado. A ideia não era: dado o estado de coisas, como encontrar o sistema econômico capaz de levar em conta os dados básicos próprios da agricultura europeia? Mas sim: dado que o processo de regulação econômico-político é e não pode ser senão o mercado, como modificar essas bases materiais, culturais, técnicas, jurídicas que estão dadas na Europa? Como modificar esses dados, como modificar essa moldura para que a economia de mercado intervenha? [...] Afinal, tanto a intervenção governamental deve ser discreta no nível dos processos econômicos propriamente ditos, como, ao contrário, deve ser maciça quando se trata desse conjunto de dados técnicos, científicos, jurídicos, demográficos, digamos, grosso modo, sociais, que vão se tornar agora cada vez mais o objeto da intervenção governamental" (193-194).
"Uma política social não pode adotar a igualdade como objetivo. Ao contrário, ela deve deixar a desigualdade agir e como dizia... não sei mais quem, acho que era Röpke que dizia: as pessoas se queixam da desigualdade, mas o que isso quer dizer? 'A desigualdade é a mesma para todos', diz ele. Fórmula que, evidentemente, pode parecer enigmática, mas que é fácil compreender a partir do momento em que se considera que, para ele, o jogo econômico, com os defeitos desigualitários que ele comporta, é uma espécie de regulador geral da sociedade, a que, evidentemente, todos devem prestar e se dobrar. Logo, nada de igualização e, por conseguinte, de modo mais preciso, nada de transferência de renda d uns para outros" (196).
Não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de conceder a cada um uma espécie de espaço econômico, dentro do qual podem assumir os riscos.
O que nos conduz, claro, à conclusão de que, pois bem, só ha uma política social verdadeira e fundamental: o crescimento econômico. [...] A ideia de uma privatização dos mecanismos do seguro, em todo caso a ideia de que cabe ao indivíduo, pelo conjunto das reservas de que ele vai poder dispor, seja a título simplesmente individual, seja por intermédio das sociedades de ajuda mútua, etc., [proteger-se dos riscos], esse objetivo é, apesar de tudo, o que vocês vêem em ação nas políticas neoliberais tais como a que conhecemos atualmente na França. É essa a tendência: a política social privatizada. [...] Primeiro ponto a salientar, este: vocês vêem que a intervenção governamental - e isso os neoliberais sempre disseram - não é menos densa, menos frequente, menos ativa, menos continua do que num outro sistema. [...] O neoliberalismo, o governo neoliberal não tem de corrigir os efeitos destruidores do mercado sobre a sociedade. Ele não tem de constituir, de certo modo, um contraponto ou um anteparo entre a sociedade e os processos econômicos. Ele tem de intervir sobre a própria sociedade em sua trama e em sua espessura. No fundo, ele tem de intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante e em cada ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores - e é nisso que a sua intervenção vai possibilitar o que é o seu objetivo: a constituição de um regulador de mercado geral da sociedade. Vai se tratar portanto, não de um governo econômico, como aquele com que sonhavam os fisiocratas, isto é, o governo tem apenas de reconhecer e observar as leis econômicas; não é um governo econômico, é um governo da sociedade" (197-199).
"O homo oeconomicus que se quer reconstituir não é o homem da troca, não é o homem consumidor, é o homem da empresa e da produção. [...] E, por conseguinte, se há algo parecido com um retorno na política neoliberal, não é certamente o retorno a uma política governamental do laissez-faire, certamente não é o retorno a uma sociedade mercantil como a que Marx denunciava no início do livro I do Capital. Procura-se voltar, isso sim, a uma espécie de ética social da empresa, de que Weber, Sombart, Schumpeter procuraram fazer a história política, cultural e econômica" (201).
"Ser liberal não é, portanto, em absoluto, ser conservador, no sentido da manutenção dos privilégios de fato resultantes da legislação passada. É, ao contrário, ser essencialmente progressista no sentido de uma perpétua adaptação da ordem legal às descobertas científicas, aos progressos da organização e da técnica econômicas, às mudanças de estrutura da sociedade, às exigências da consciência contemporânea" (224).
"O que é o sistema? Pois bem, é um conjunto complexo que compreende processos econômicos cuja análise propriamente econômica decorre, de fato, de uma teoria pura e de uma formalização que pode ser, por exemplo, a formalização dos mecanismos de concorrência, mas esses processos econômicos só existem realmente na história na medida em que uma moldura institucional e regras positivas lhe proporcionaram suas condições de possibilidade. Eis o que, historicamente, quer dizer essa análise comum, em suma, essa análise de conjunto das relações de produção" (226).
"Eu creio que o liberalismo americano, atualmente, não se apresenta apenas, não se apresenta tanto como uma alternativa política, mas digamos que é uma espécie de reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda. É também uma espécie de foco utópico sempre reativado. [...] É Hayek, que dizia, há alguns anos: precisamos de um liberalismo que seja um pensamento vivo. O liberalismo sempre deixou por conta dos socialistas o cuidado de fabricar utopias, e foi a essa atividade utópica ou utopizante que o socialismo deveu muito do seu vigor e do seu dinamismo histórico. Pois bem, o liberalismo também necessita de utopia. Cabe-nos fazer utopias liberais, cabe-nos pensar no modo do liberalismo, em vez de apresentar o liberalismo como uma alternativa técnica de governo. O liberalismo como estilo geral de pensamento, de análise e de imaginação" (301-302, ênfase minha).
"O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. [...] O objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda" (311).
"[...] aplicar análises econômicas a campos e a áreas que são totalmente novos" (312).
"Como diz Becker, toda conduta 'que aceite a realidade' - deve poder resultar de uma análise econômica. O homo oeconomicus é aquele que aceita a realidade. A conduta racional é toda conduta sensível a modificações nas variáveis do meio e que responde a elas de forma não aleatória, de forma portanto sistemática, e a economia poderá portanto se definir como a ciência da sistematicidade das respostas às variáveis do ambiente" (368) --- Skinner ---
"O homo oeconomicus é, do ponto de vista de uma teoria do governo, aquele em que não se deve mexer. Deixa-se o homo oeconomicus fazer. É o sujeito ou o objeto do laissez-faire. É, em todo caso, o parceiro de um governo cuja regra é o laissez-faire. E eis que agora, nessa definição de Becker tal como eu lhes dei, o homo oeconomicus, isto é, aquele que aceita a realidade ou que responde sistematicamente às modificações nas variáveis do meio, esse homo oeconomicus aparece justamente como o que é manejável, o que vai responder sistematicamente a modificações sistemáticas que serão introduzidas artificialmente no meio. O homo oeconomicus é aquele que é eminentemente governável. De parceiro intangível do laissez-faire, o homo oeconomicus aparece agora como o correlativo de uma governatmentalidade que vai agir sobre o meio e modificar sistematicamente as variáveis do meio" (369).
"O sujeito de direito é por definição um sujeito que aceita a negatividade, que aceita a renúncia a si mesmo, que aceita, de certo modo, cindir-se e ser, num certo nível, detentor de um certo número de direitos naturais e imediatos e, em outro nível, aquele que aceita o princípio de renúncia a eles e vai com isso se constituir como um outro sujeito de direito superposto ao primeiro. A divisão do sujeito, a existência de uma transcendência do segundo sujeito em relação ao primeiro, uma relação de negatividade, de renúncia, de limitação entre um e outro, é isso que vai caracterizar a dialética ou a mecânica do sujeito de direito, e é aí, nesse movimento, que emergem a lei e a proibição. [...] Temos, [...], com o sujeito de interesse tal como os economistas o fazem funcionar uma mecânica totalmente diferente dessa dialética do sujeito de direito, já que é uma mecânica egoísta, é uma mecânica imediatamente multiplicadora, é uma mecânica sem transcendência nenhuma, é uma mecânica em que a vontade de cada um vai se harmonizar espontaneamente e como que involuntariamente à vontade e ao interesse dos outros. Estamos bem longe do que é a dialética da renúncia, da transcendência e do vínculo voluntário que se encontra na teoria jurídica do contrato. O mercado e o contrato funcionam exatamente ao contrário um do outro, e têm-se na verdade duas estruturas heterogêneas uma à outra" (375-376, ênfase minha).
"É isso, parece-me, que caracteriza a racionalidade liberal: como regular o governo, a arte de governar, como [fundar] o princípio de racionalização da arte de governar no comportamento racional dos que são governados" (423, ênfase minha).
"E é nisso que vocês vêem no mundo moderno, o mundo que nós conhecemos desde o século XIX, toda uma série de racionalidades governamentais que se acavalam, se apoiam, se contestam, se combatem reciprocamente. Arte de governar pautada pela verdade, arte de governar pautada pela racionalidade do Estado soberano, arte de governar pautada pela racionalidade dos agentes econômicos, de maneira mais geral, arte de governar pautada pela racionalidade dos próprios governados. São todas essas diferentes artes de governar, essas diferentes maneiras de calcular, de racionalizar, de regular a a arte de governar que, acavalando-se reciprocamente, vão ser, grosso modo, objeto de debate político desde o século XIX. O que é a política, finalmente, senão ao mesmo tempo o jogo dessas diferentes artes de governar com seus diferentes indexadores e o debate que essas diferentes artes de governar suscitam? É aí, parece-me, que nasce a política. Bom, é isso. Obrigado." (424).
Michel Foucault, Nascimento da Bioplítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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