jueves, 6 de octubre de 2022

Hannah Arendt, "Culpa organizada e responsabilidade universal" (III)

 

"Ao tentar entender os verdadeiros motivos que levaram as pessoas a agir como engrenagens da máquina de assassinato em massa, não nos servirão as especulações sobre a história alemã e o chamado caráter nacional alemão, de cujas potencialidades quem conhecia intimamente a Alemanha não fazia a mais leve idéia há quinze anos. Mais instrutiva é a personalidade característica do homem que pode se vangloriar de ter sido o espírito organizador do assassinato. Heinrich Himmler não é um daqueles intelectuais provenientes da indistinta Terra de Ninguém, entre o Boêmio e o Cafetão, cujo papel na composição da elite nazista tanto tem sido ressaltado nos últimos tempos. Não é um boêmio como Goebbels, nem um criminoso sexual como Streicher, nem um fanático pervertido como Hitler, nem um aventureiro como Göring. É um 'burguês' com toda a aparência de respeitabilidade, todos os hábitos de um bom páter-famílias que não trai a esposa e procura ansiosamente garantir um futuro decente para os filhos; montou sua mais recente organização terrorista, que abrange todo o país sob a idéia preconcebida de que os indivíduos, na maioria, não são boêmios nem fanáticos, nem aventureiros, tarados sexuais ou sádicos, e sim, acima de tudo, trabalhadores e bons homens de família.


Foi Péguy, creio, que definiu o pai de família como o grand aventurier du 20e. siècle. Morreu antes de saber que era também o grande criminoso do século. Estávamos tão acostumados a admirar ou ridiculizar levemente o bondoso interesse e a séria dedicação do pai de família ao bem-estar de seus entes queridos, sua determinação solene de facilitar a vida para a esposa e os filhos, que quase nem percebemos que esse devotado páter-famílias, preocupado principalmente com sua segurança, se transformou, sob a pressão das condições econômicas caóticas de nossos tempos, num aventureiro involuntário que, apesar de todo o seu cuidado e e dedicação, nunca pode ter certeza do que lhe trará o dia seguinte. A docilidade dessa figura já havia se manifestado no período inicial da Gleichschaltung [sincronização] nazista. Ficou evidente que esse tipo de homem, para defender sua aposentadoria, o seguro de vida, a segurança da esposa e dos filhos, se disporia a sacrificar suas convicções, sua honra e sua dignidade humana. Foi necessário apenas que o gênio satânico de Himmler descobrisse que, após essa degradação, ele estava totalmente preparado para fazer qualquer coisa depois de entregar o que tinha, e era apura existência da família que estava sob ameaça. A única condição que ele apresentava era ficar totalmente isento da responsabilidade por seus atos [...].


[...] Essa transformação do pai de família, de membro responsável da sociedade, interessado em todos os assuntos públicos, a 'burguês' interessado apenas em sua existência privada, ignorando qualquer virtude cívica, constitui um fenômeno internacional de nossa época.


[...] O que chamamos de 'burguês' é o homem de massa moderno, não em seus momentos exaltados de emoção coletiva, mas na segurança (hoje caberia melhor dizer insegurança) de seu domínio privado."


- Hannah Arendt, 1945.


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“Viajo a Auschwitz. Beijos: Teu Heini”



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