miércoles, 24 de mayo de 2023

Derrida & Roudinesco: 'De que amanhã...' (corpo sem sujeito?)

 

ER: Percebo barbárie em certas manifestações cientificistas, [...], na medida em que se trata fundamentalmente, sempre, de reduzir o humano a um corpo sem sujeito. É útil a meu ver reler, a esse propósito, a famosa conferência de Georges Canguilhem, "O cérebro e o pensamento", na qual denuncia como uma barbárie qualquer forma de psicologia que pretendesse se apoiar na biologia e na fisiologia para afirmar que o pensamento seria apenas efeito de uma secreção do cérebro...

JD: Reações ético-jurídicas na deveriam se moelar nessa caricatura cientificista...

ER: Os partidários do que chamamos de cognitivo-comportamentalismo acreditam realmente que um dia poderemos prescindir totalmente dos conceitos de sujeito, de inconsciente e consciência...

JD: O direito ocidental é o lugar próprio, um lugar privilegiado em todo caso, da emergência e d autoridade do sujeito, do conceito de sujeito. Se ele está mantido no direito, está por toda a parte. Como extirparíamos o sujeito do direito?

ER: Como uma sobrevivência necessária para a representação do laço social. Nesse contexto, tratar-se ia de manter a existência de um sujeito da ética ou da responsabilidade, desprovido de qualquer ancoragem numa realidade psíquica, afetiva, pulsional. Isso nada tem a ver, naturalmente, com o sujeito da ética de que fala Foucault e que é um sujeito em vias de se inventar desprendendo-se de si mesmo...

* * *

JD: ... É preciso também saber que sem algum não-saber, nada acontece que mereça o nome de "acontecimento".

Jacques Derrida & Elisabeth Roudinesco, 'De que amanhã...', Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

 

 

 

miércoles, 3 de mayo de 2023

A moral (sem fundamento) - André Comte-Sponville

 

    "[É esse o sentido da] famosa formulação kantiana do imperativo categórico, nos Fundamentos da mestafísica dos costumes: 'aja unicamente de acordo com uma máxima tal que você possa querer que ela se torne uma lei universal." Isso é agir de acordo com a humanidade, em vez de conforme o seu 'euzinho querido', e obedecer à sua razão em vez de às suas tendências ou aos seus interesses. Uma ação só é boa se o princípio a que se submete (sua 'máxima') puder valer, de direito, para todos: agir moralmente é agir de tal sorte que você possa desejar, sem contradição, que todo indivíduo se submeta aos mesmos princípios que você. Isso coincide com o espírito dos Evangelhos ou com o espírito da humanidade (encontramos formulações equivalentes em outras religiões), cuja 'máxima sublime' Rousseau assim enuncia: 'Faz com os outros o que queres que os outros te façam.' Isso também coincide, mais modestamente, mais lucidamente, com o espírito da compaixão, de que Rousseau, ele de novo, nos á a fórmula 'muito menos perfeita, porém mais útil talvez que a precedente: Faz teu bem fazendo o menor mal possível aos outros'. Isso é viver, ao menos em parte, de acordo com o outro, ou antes, de acordo consigo, mas na medida em que julgamos e pensamos. 'Sozinho, universalmente...', dizia Alain. É a própria moral.
    Será preciso um fundamento para legitimar essa moral? Não é necessário, nem tem de ser possível. Uma criança está se afogando. Você precisa de um fundamento para salvá-la? Um tirano massacra, oprime, tortura... Você precisa de um fundamento para combatê-lo? Um fundamento seria uma verdade inconteste, que viria garantir o valor dos nossos valores: isso nos permitiria demonstrar, inclusive àquele que não os compartilha, que temos razão e ele não. Mas, para tanto, seria preciso fundar a razão, o que não é possível. Que demonstração sem um princípio prévio, que seria preciso demonstrar previamente? E que fundamento, tratando-se de valores, não pressupõe a própria moral que ele pretende fundar? Ao indivíduo que pusesse o egoísmo acima da generosidade, a mentira acima da sinceridade, a violência ou a crueldade acima da doçura ou da compaixão, como demonstrar que está errado e que importância daria ele a tal demonstração? A quem só pensa em si, que importa o pensamento? A quem só vive para si, que importa o universal? Quem não hesita em profanar a liberdade do outro, a dignidade do outro, por que respeitaria o princípio de não contradição? E por que, para combatê-lo, seria preciso ter primeiramente os meios para refutá-lo? O horror não se refuta. O mal não se refuta. Contra a violência, contra a crueldade, contra a barbárie, necessitamos menos de um fundamento do que de coragem. E diante de nós mesmos, menos de um fundamento do que de exigência e de fidelidade. Trata-se de não ser indigno do que a humanidade fez de cada um, e de todos nós. Por que precisaríamos, para tanto de um fundamento ou de uma garantia? Como seriam eles possíveis? A vontade basta, e vale mais."

André Comte-Sponville, Apresentação da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2002.


sábado, 28 de enero de 2023

David Lodge - Nice Work (quotes)

 

"And there, for the time being, let us leave Vic Wilcox, while we travel back an hour or two in time, a few miles in space, to meet a very different character. A character who, rather awkwardly for me, doesn't herself believe in the concept of character. That is to say (a favourite phrase of her own), Robyn Penrose, Temporary Lecturer in English Literature at the University of Rummidge, holds that 'character' is a bourgeois myth, an illusion created to reinforce the ideology of capitalism. As evidence for this assertion she will point to the fact that the rise of the novel (the literary genre of 'character' par excellence) in the eighteenth century coincided with the rise of capitalism; that the triumph of the novel over all other literary genres in the nineteenth century coincided with the trimph of capitalism; and that the modernist and postmodernist deconstruction of the classic novel in the twentieth century coincided with the terminal crisis of capitalism.
    Why the classic novel should have collaborated with the spirit o capitalism is perfectly obvious for Robyn. Both are expressions of secularized Protestant ethic, both dependent on the idea of an autonomous individual self who is responsible for and in control of his/her own destiny, seeking happiness and fortune in competition with other autonomous selves. This is true of the novel considered both as commodity and as mode of representation. (Thus Robyn in full seminar spate.) That is to say, it applies to novelists themselves as well as to their heroes and heroines. The novelist is a capitalist of the imagination. He or she invents a product which consumers didn't know they wanted until it is made available, manufactures it with the assistance of purveyors of risk capital known as publishers, and sells it in competition with makers of marginally differentiated products of the same kind. The first major English novelist, Daniel Defoe, was a merchant. The second, Sanuel Richardson, was a printer. The novel was the first mass-produced cultural artefact. (At this point Robyn, with elbows tucked into her sides, would spread her hands outwards from the wrist, as if to imply that there is no need to say more. But of course she always has much more to say.)
    According to Robyn (or, more precisely, according to the writers who have influenced her thinking on these matters), there is no such thing as the 'self' on which capitalism and the classic novel are founded - that is to say, a finite, unique soul or essence that constitutes a person's identity; there is only a subject position in an infinite web of discourses - the discourses of power, sex, family, science, religion, poetry, etc. And by the same token, there is no such thing as an author, that is to say, one who originates a work of fiction ab nihilo. Every text is a product of intertextuality, a tissue of allusions to and citations of other texts; and, in the famous words of Jacques Derrida (famous to people like Robyn, anyway), 'il n'y a pas de hors-texte', there is nothing outside the text. There are no origins, there is only production, and we produce our 'selves' in language. Not 'you are what you eat' but 'you are what you speak' or, rather 'you are what speaks you', is the axiomatic basis of Robyn's philosophy, which she would call, if required to give it a name, 'semiotic materialism'. It might seem a bit bleak, a bit inhuman ('antihumanist, yes; inhuman, no,' she would interject), somewhat deterministic ('not at all; the truly determined subject is he who is not aware of the discursive formations that determine him. Or her,' she would add scrupulously, being among other things a feminist), but in practice this doesn't seem to affect her behaviour very noticeably - she seems to have ordinary human feelings, ambitions, desires, to suffer anxieties, frustrations, fears, like anyone else in this imperfect world, and to have a natural inclination to try and make it a better place. I shall therefore take the liberty of treating her as a character, ot utterly different in kind, though of course belonging to a very different social species, from Vic Wilcox" (p. 39-41).

*  *  *

    "'But doesn't it bother you at all?' Robyn said. 'That the things we care so passionately about - for instance, whether Derrida's critique of metaphysics lets idealism in by the back door, or whether Lacan's psychoanalytic theory is phallogocentric, or whether Foucault's theory of the episteme is reconciliable with dialectical materialism - things like that, which we argue about and read about and write about endlessly - doesn't it worry you that ninety-nine point nine per cent of the population couldn't give a monkey's?'" (p. 217).

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    "'But repetition is death! Robyn cried. 'Difference is life. Difference is the condition of meaning. Language is a system of differences, as Saussure said'" (p. 351).


David Lodge, Nice Work, Penguin Books, 1989 (Secker & Warburg,1988).


jueves, 19 de enero de 2023

David Lodge - Small World (quotes)

 

   "I wouldn't call myself a structuralist," Morris Zapp interrupted, "A post-structuralist, perhaps."
    Philip Swallow made a gesture implying impatience with such subtle distinctions. "I refer to that fundamental scepticism about the possibility of achieving certainty about anything, which I associate with the mischievous influence of Continental theorizing. There was a time when reading was a comparatively simple matter, something you learned to do in primary school. Now it seems to be some kind of arcane mistery, into which only a small élite have been initiated. I have been reading books for their meaning all my life - or at least that is what I have always thought I was doing. Apparently I was mistaken."
    "You weren't mistaken about what you were trying to do," said Morris Zapp, relighting his cigar, "you were mistaken in trying to do it."
    "I have just one question," said Philip Swallow. "It is this: what, with the greatest respect, is the point of our discussing your paper, if, according to your own theory, we should not be discussing what you actually said at all, but discussing some imperfect memory or subjective interpretation of what you said?"
    "There is no point," said Morris Zapp blithely. "If by point you mean the hope of arriving at some certain truth. But when did you ever discover that in a question-and-discussion session? Be honest, have you ever been to a lecture or seminar at the end of which you could have found two people present who could agree on the simplest précis of what had been said?"
    "Then, what in God's name is the point of it all?" cried Philip Swallow, throwing his hands into the air. 
    "The point, of course, is to uphold the institution of academic literary studies. We mantain our position in society by publicly performing a certain ritual, just like any other group of workers in the realm of discourse - lawyers, politicians, journalists. And as it looks as if we have done our duty for today, shall we all adjourn for a drink?" - (p. 27-28).

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"He tries to suppress his own knowledge of what comes next, tries no to see the crucial passage looming ahead. He is trying to trick his own brain. Don't look, don't look! Keep going, keep going! Gather all your strength up into one ball, ready to spring, NOW!

    The question is, therefore, how can literary criticism mantain its Arnoldian function of identifying the best which has been thought and said, when literary discourse itself has been decentred by deconstructing the traditional concept of the author, of 'authority'. Clearly

Yes, clearly...?
  
    Clearly

Clearly what?

[...] Rodney Wainwright slumps forward onto his desk and buries his face in his hands. Beaten again" (p. 140).

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 "He [Rudyard Parkinson] had never heard of Philip Swallow, and a first book by a redbrick professor did not promise much. As he riffled the pages, however, his attention was caught by a quotation from an essay of Hazzlitt's entitled "On Criticism": "A critic does nothing nowadays who does not try to torture the most obvious expression into a thousand meanings... His object indeed is not to do justice to his author, whom he treats with very little ceremony, but to do himself homage, and to show his acquaintance with all the topics and resources of criticism" (p. 161).

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"As usual, he wasted a great deal of time wondering which books to take on his journey. He had a neurotic fear of finding himself stranded in some foreign hotel or railway station with nothing to read, and in consequence always travelled with far too many books, most of which he brought home unread" (p. 165).

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"For a man who claims to believe in the morally improving effects of reading great literature, Philip Swallow (it seems to Morris) takes his marriage vows pretty lightly" (p. 249).

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"Do you know what she said? 'Professor Tardieu, it is not what you say that impresses me most, it is what your are silent about: ideas, morality, love, death, things... This notebook' - she fluttered its vacant pages - 'is the record of your profound silences. Vos silences profonds'" (p. 265).

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    "Right, you can get anything you want by telephone in this city: Chinese food, massage, yoga lessons, acupuncture. You can even all up girls who will talk to you dirty to you for so much a minute. You pay bay credit car. But if you're into deconstruction, you can just watch all these trailers in a row as if it was one, free, avant-garde movie. Mind you," he added pensively, "I've rather lost faith in deconstruction. I guess it showed this afternoon."
    "You mean every decoding is not another encoding after all?"
    "Oh it is, it is. But the deferral of meaning isn't infinite as far as the individual is concerned."
    "I thought deconstructionists didn't believe in the individual."
    "They don't. But death is the one concept you can't deconstruct. Work back from there and you end up with the old idea of an autonomous self. I can die, therefore I am. I realized that when those wop radicals threatened to deconstruct me" (p. 328).


David Lodge, Small World, Penguin Books, 1995 (Martin Secker & Warburg Ltd., 1984).
    

viernes, 16 de diciembre de 2022

Kei Hiruta on Hannah Arendt's understanding of what it means to be human

 

"Why does Arendt privilege politics over other human activities? Why does she repeatedly underline the intrinsic connection between political freedom and ‘a truly human life’? The answer is found in her understanding of the human condition—of what it means to be human. True, she is reluctant to discuss ‘human nature’ in general or ‘Man’ in the abstract. But what she rejects is a static conception of human nature. She does not refrain from making important general claims about human beings, so long as the claims are about a stable and yet changeable, ‘quasi-transcendental’ set of conditions. These conditions reveal a general, albeit non-absolute, structure of human beings’ concrete existence. 

To some extent, it is a matter of mere semantics whether the term ‘human nature’ should be avoided due to its unfortunately essentialist connotations. Freedom Few serious thinkers in modernity, and surely none after Darwin, have considered nature—let alone human nature—to be static, fixed or unchangeable. Nevertheless, the term ‘human nature’ is often seen as implying such essentialism, and Arendt proposes, in The Human Condition, to use the term ‘human condition’ to pre-empt confusion. Her terminological preference, however, is more than a simple effort to pre-empt confusion. It also signals her broadly Heideggerian orientation that draws our attention to ‘conditions’ understood as defining limits. [...] It is important to keep in mind in this context that conditions are not the same as constraints, and limits are not the same as limitations. On the contrary, conditionality in Arendt’s sense demarcates the realm of possibility; what men and women can do, as well as cannot do, depends on the human condition. To understand how men and women are conditioned in this sense is to understand what it means to be human."


Hiruta, Kei. Hannah Arendt & Isaiah Berlin, New Jersey: Princeton University Press, 2021, p. 72-73.

viernes, 4 de noviembre de 2022

Positividade tóxica (Svend Brinkmann) - Passagens

«A ciência moderna, mecânica, rejeitava as ideias gregas de propósito, sentido e valor na natureza. Em vez disso, a natureza era vista como um sistema mecânico que funcionava de acordo com certos princípios de causa e efeito, conforme formulados nas leis naturais. Como disse Galileu, “o Livro da natureza foi escrito na linguagem da matemática”. Na medida em que existiam propósito, significado e valor, eles eram projeções puramente psicológicas sobre uma natureza que, em si mesma, era desprovida de tais características. Sem me aprofundar, é aí que encontramos a inovação da ciência natural que – para citar a famosa frase do sociólogo Max Weber – “desencanta o mundo” ao mesmo tempo que “reencanta” a mente humana. É aqui que nós, em nossa era da modernidade, devemos buscar os aspectos essenciais da vida, isto é, éticas e valores. No entanto, também há um preço a pagar: esses aspectos são subjetivos e tendem ao psicológico, o que leva à ideia de importância do que está dentro de você e à religião do eu, como a chamei neste livro» (143).

 

«Em uma cultura na qual tudo está em aceleração, certa forma de conservadorismo pode ser a abordagem verdadeiramente progressista» (20).

 

«De fato, ser você mesmo não possui nenhum valor intrínseco. Em contrapartida, o que tem valor inerente é cumprir suas obrigações para com as pessoas às quais está conectado (ou seja cumprir seu dever). Se é ou não “você mesmo” enquanto faz isso é essencialmente irrelevante. [...] Em minha opinião, é melhor estar em dúvida sobre o que seus sentimentos viscerais significam – e sobre se você encontrou ou não a si mesmo – do que segui-los e perseguir esse vago conceito do eu de maneira bitolada. Quando aceitamos que o eu é algo impossível de definir e os sentimentos viscerais são pouco confiáveis, a própria dúvida se torna uma virtude» (37).

 

«A ideia de “assumir o caráter” é importante. Ao contrário de conceitos da psicologia popular como personalidade e competências (que você pode “trabalhar” e “desenvolver”), o conceito de caráter se refere a valores morais partilhados. O indivíduo que insiste em se manter firme e apoiar certos valores com base em seu mérito inerente – e, consequentemente, é capaz de dizer não quando esses valores são ameaçados – tem caráter» (58).

 

«O filósofo Anders Fogh Jensen chamou nossa era de “sociedade dos projetos”, na qual todas as atividades e práticas são concebidas como projetos frequentemente transitórios, breves e recicláveis. Ele descreve como nós, os indivíduos dessa sociedade, fazemos um overbook de compromissos e projetos na tentativa de usar toda a nossa capacidade – mais ou menos como fazem as empresas aéreas. Como nossos deveres se tornam meros “projetos”, eles são temporários, e nós os rejeitamos se algo mais interessante surge em nosso radar. Mesmo assim, a ideia predominante é ade que devemos dizer sim aos projetos. A habilidade de arrancar um entusiasmado “Sim!” é uma competência essencial na cultura acelerada, algo a se destacar em entrevistas de emprego. “Dizer sim aos novos desafios” é considerado inequivocamente bom, ao passo que um polido “não, obrigado” é interpretado como falta de coragem e indisposição para mudar» (62).

 

«Na cultura acelerada, a paz de espírito já não é um estado desejável. É um problema» (63).

 

«Autenticidade – [...] há muitas razões para ser cético em relação a esse conceito. Em vez de tentar ser autêntico a qualquer custo, o adulto racional deve se esforçar para manter um pouco de dignidade, o que presume a habilidade de controlar as emoções» (76).

 

«O conceito de neurose nem sequer consta nos sistemas de diagnóstico mais recentes. Grosso modo, a neurose era algo que afligia as pessoas em uma sociedade que exigia que elas se enraizassem, que fossem estáveis e ajustadas. Se falhassem em atingir esse objetivo, a neurose estava à espera, como um casaco pronto para ser vestido. Desde então, a mobilidade substituiu a estabilidade, e a moral é baseada não na proibição (você não deve), mas no comando (você deve). Previamente, as emoções deviam ser reprimidas, mas agora devem ser expressas. [...] O problema já não é o excesso de emoções, mas a falta. [...] O problema hoje não são as pessoas (abertamente) flexíveis, mas as pessoas (abertamente) estáveis: elas não possuem motivação suficiente, impulso e desejo de acompanhar as sempre demandas por flexibilidade, adaptabilidade e autodesenvolvimento. A categoria de transtorno mental que denota a falta d energia e vazio emocional já não é a neurose, mas a depressão. Atualmente, os problemas não derivam de emoções e desejos, ou seja, de querer demais. Em vez disso, houve uma mudança na maneira como “demais” é quantificado. E isso continua a mudar em uma sociedade que enaltece o desenvolvimento e a mudança como virtudes acima de todas as outras. Na cultura acelerada, não há querer demais. Os vencedores são os que querem mais» (77-78).

 

«Lá no século XX, o filósofo Charles Taylor analisou como aquilo que chamou de ética da autenticidade (ou seja, de que o importante é ser verdadeiro consigo mesmo) podia resultar em novas formas de dependência, nas quais as pessoas que estavam em dúvida sobre sua identidade precisavam de muitos guias de autoajuda. O que as deixava em dúvida sobre a própria identidade e levava ao risco de dependência? Taylor diz que isso ocorre porque começamos a adorar o eu de uma maneira que nos isolava do mundo em volta: história, natureza, sociedade e qualquer outra coisa originada em fontes externas. [...]. Se negamos a validade das fontes externas, só o que resta como base para a definição do eu somos nós mesmos. [...] É um paradoxo fundamental que a literatura de autoajuda celebre o indivíduo, sua liberdade de escolha e sua autorrealização e, ao mesmo tempo, ajude a criar pessoas cada vez mais viciadas em intervenções terapêuticas e de autoajuda. Afirma-se que a autorrealização resulta em adultos autossuficientes, mas, na verdade ela cria adultos infantilizados e dependentes que acham que a verdade está no interior deles mesmos» (105-106).

 

«Conhecer e ser capaz de lembrar do próprio passado é um pré-requisito para manter uma identidade relativamente estável e, por conseguinte, para nossos relacionamentos morais com os outros. Se queremos viver bem no sentido moral, é crucial que saibamos como refletir sobre nosso passado. Mark Twain disse que a consciência limpa é um sinal seguro de uma memória ruim» (124).

 

«O filósofo francês Paul Ricoeur em sua obra seminal O si-mesmo como outro, tentou mostrar que as pessoas só podem ser morais, no sentido estrito da palavra, se forem capazes de se identificar com sua vida como um todo ou como algo que atravessa o tempo como um continuum e é mais bem entendido como uma história, uma narrativa coerente. Ele pergunta, retoricamente: “Como o sujeito de uma ação poderia dar um caráter ético a sua vida como um todo se essa vida não estivesse reunida de alguma maneira, e como isso poderia ser feito, senão na forma de narrativa?”» (125).

 

«É absurdo ser eternamente móvel, positivo e focado no futuro, colocando o eu no centro de tudo na vida. Não somente é absurdo, como também traz consequências negativas para os relacionamentos interpessoais, uma vez que as outras pessoas são rapidamente reduzidas a instrumentos a serem usados pelo indivíduo em sua busca pelo sucesso, em vez de serem um fim em si mesmas, para com quem temos obrigações morais» (134).

 

«Antigamente, o problema era querer demais. Agora, o problema é que nunca seremos capazes de fazer o suficiente em uma sociedade que exige constantemente que façamos mais e mais» (135).

 

«Fundamentalmente, os seres humanos são vulneráveis, e não indivíduos fortes e autossuficientes. Nascemos como bebês indefesos; frequentemente ficamos doentes; envelhecemos, às vezes desamparados; e, por fim, morremos. Essas são as realidades básicas da vida. No entanto, grande parte da filosofia e da ética ocidentais se baseia na ideia de um indivíduo forte e autônomo, à custa de nossa fragilidade e vulnerabilidade, que forma praticamente esquecidas» (138).

 

«Quando o estoicismo chegou a Roma, a ênfase grega estava na importância da virtude, enquanto a paz de espírito era uma preocupação secundária. Os estoicos romanos também estavam preocupados com a virtude e o cumprimento do dever, mas consideravam a paz de espírito um pré-requisito para isso. Você não pode cumprir seu dever sem paz de espírito e, desse modo, ela era vista como parte da estrada para a virtude» (142)

 

«Se um leitor moderno perguntasse a Sêneca como aproveitar ao máximo sua curta vida, a resposta não seria viver o maior número possível de experiências, mas levar uma vida serena, com paz de espírito e as emoções negativas sob controle» (145).

 

«Não usei, mas indiretamente critiquei, a ênfase dos estoicos na importância do momento. Não acredito que a humanidade viva principalmente no momento, mas no tempo como uma estrutura extensa e contínua. O foco no presente e no poder do indivíduo para determinar como será afetado pelo que acontece agora se parece muito com a atual onda de autodesenvolvimento (“Você pode escolher ser feliz agora!”). Em minha visão, isso dá ao indivíduo uma responsabilidade grande demais pela maneira como encontra o mundo. Não acredito que possamos escolher livremente como seremos afetados pelo presente. Na extensão em que isso é um ideal estoico, eu diria que o estoicismo deve ser desafiado. Somos, em uma extensão muito maior do que os estoicos teriam aceitado, impotentes – e, de fato, perceber isso pode ser uma fonte de solidariedade entre as pessoas» (149). 


jueves, 20 de octubre de 2022

Leonidas Donskis (Z. Bauman & L. Donskis, Cegueira moral)

 


"Sua vida profissional e toda a sua existência são consideradas legítimas enquanto houver uma instituição por trás de você. Sem isso, você perde elementos de sua identidade e se torna um ninguém [...].

Que tipo de pessoas teriam sido Descartes, Spinoza, Pascal, Leibniz ou Locke no mundo de hoje? Charlatães, lunáticos ou insignificâncias absolutas. Foram pessoas do início da modernidade, ou da primeira modernidade, autossustentável e ainda não autodestrutiva, que prolongaram o Renascimento. Hoje provavelmente não saberíamos nada sobre eles, já que não estariam ligados a nenhuma instituição acadêmica conhecida. A fixação e o “confinamento” de intelectuais e pensadores a instituições acadêmicas ocorreram no século XIX. É interessante que Oswald Spengler, que odiava e desprezava os filósofos acadêmicos, não tenha submetido sua obra A decadência do Ocidente à revisão de professores universitários, mas de um intelectual da política, o ministro de Relações Exteriores alemão em 1922, Walther Rathenau.

Sem completar o doutorado nem se adaptar ao mundo acadêmico, Ludwig Wittgenstein talvez tenha sido o último grande filósofo não acadêmico ou semiacadêmico do mundo ocidental. Mas sua popularidade só se generalizou no período que ele passou em Cambridge, e sobretudo graças a seus alunos e seguidores. Michel Foucault quase desapareceu na obscuridade do mundo acadêmico – o que significava de todo o campo existencial – ainda jovem, quando a Universidade de Uppsala, onde lecionava, rejeitou como indefensável sua tese de doutorado sobre a história das ideias. Agora isso pode parecer um lapso estranho e infeliz da academia sueca, mas é um fato sintomático do estado atual do mundo acadêmico – a estrada que leva da grandeza à inexistência, ou vice-versa, é curta e imprevisível.

Não pode haver outra alternativa num mundo que reconhece um método, um grupo ou uma instituição, mas não um indivíduo criativo."


Leonidas Donskis (1962-2016) In: Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis, Cegueira moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida, RJ, Zahar, 2013.