martes, 8 de julio de 2008

Cléo e Daniel (Roberto Freire)

Atenção: Nesta entrada se conta o argumento do romance.

Cléo e Daniel é a história de um psiquiatra em crise profissional e pessoal e o seu relacionamento com alguns dos segmentos mais desfavorecidos e estigmatizados da sociedade brasileira (o romance ocorre em São Paulo) de finais dos anos 1960.

O livro, que não tem uma estrutura lineal definida, se passa em três planos diferentes. Primeiro, a relação de Rudolf Flügel com Benjamin e tudo o que daí decorre: «Benjamin. Ele é baiano. Preferiu viver em São Paulo porque adora o deserto. [...] Negro, retinto, há quase quarenta anos Benjamin é poeta, antropologista, filósofo e solteiro. Como tudo isso não rende dinheiro algum, tornou-se o mais completo tradutor da cidade.» (Pg. 11-12) Segundo, a cafetina francesa Gabrielle, de mais de sessenta anos, seu Bar do Viajante “Requiescat in Pace” e a turma de homossexuais velhos, os “elefantes”, que o freqüentam. O terceiro núcleo seria o composto por Cléo, Daniel e amigos como Marcus. Rudolf entra em relação com cada um dos personagens. E logo, como quase sempre, tem alguns personagens secundários que, em muitos dos casos, são tanto ou mais importantes que os principais, por causa de algumas das palavras que o escritor faz-lhes dizer ou ouvir da boca do protagonista.

Desta vez, não é a minha intenção fazer o resumo do romance. A história que explica o livro não é só uma, é várias. Do total de 261 páginas de que consta a edição que usei, encontrei na 206 o que se pode considerar como a síntese temática de Cléo e Daniel: «Mais especificamente, o mito de Rudolf é este: devorar a esfinge em lugar de decifrá-la. E seguir o itinerário da solidão, percorrendo os caminhos do sexo, da loucura e da morte.»

A relação entre Rudolf e Benjamin explora a natureza do sexo e do amor, ou, melhor ainda, da perda do amor, no que depois se revelara como uma das teses principais do livro: a inexistência do amor é a causa da natureza torcida da humanidade. Benjamin e Rudolf dividiam, quando ainda nem se conheciam, amizade e corpo com Beatriz e Madalena. Beatriz, a pintora, divide apartamento com Fernanda, a atriz. Amante das duas, Rudolf deixa grávida Fernanda, fato que o afunda na desesperação. Mais ainda quando Fernando e o filho morrem no parto.

O “Requiescat in Pace” simboliza o lugar não aceito pela sociedade burguesa, o bar dos danificados e excluídos. A cafetina e as suas prostitutas, os quartos, e essa turma dos “elefantes” que passa os dias e as noites nessa atmosfera lúgubre, descrita por Rudolf, não julgada. A ação no “Requiescat...” começa com a morte de uma das putas e acaba com a morte do local por fechamento e partida da proprietária Gabrielle. Por vezes o leitor tem a sensação que Rudolf deixou o consultório pelo bar. Como se o senhor psiquiatra tivesse deixado de ver as pessoas de acima para vê-las de lado.

E finalmente Cléo e Daniel. Cleo é uma menina que foi forçada a abortar pela sua mãe, digna representante da sociedade opulenta que Freire quer criticar e que não pode suportar a idéia da gravidez de uma filha adolescente. Pai, mãe e sua filha não convivem bem. Assim, Cléo vive de festa em festa, tomando comprimidos quantas vezes for preciso até que um dia sua mãe a leva ao psiquiatra. Ali Cléo entra em contato com Rudolf... e com Daniel. Pela sua vez, Daniel chega até Rudolf a través de Marcus, seu amigo pederasta que vem pedindo pílulas para seu amigo adito. Daniel vive aprontando, agride os seus pais, falta à escola e se revolta contra tudo o que está no seu redor. O encontro com Cléo tinha que ser inevitável. O desejo também. E o amor As duas criaturas decidem acabar com a vida juntas, uma alimentando com pílulas azuis a outra, e vice-versa. Saem à rua e, em vez de pedir ajuda, afirmam ter encontrado a paz. São pegados pela polícia e morrem diante da autoridade, despidos, abraçados, num beijo eterno.

Para Rudolf, o psiquiatra, «Cléo e Daniel simbolizavam tudo o que ele sentia sobre a espécie humana e a vida: um poder vir a ser que não virá nunca, apesar de toda a beleza que existe» (pg. 225).
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Roberto Freire, Cléo e Daniel, Editora Francis, São Paulo, Março 2004.
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