miércoles, 24 de mayo de 2023

Derrida & Roudinesco: 'De que amanhã...' (corpo sem sujeito?)

 

ER: Percebo barbárie em certas manifestações cientificistas, [...], na medida em que se trata fundamentalmente, sempre, de reduzir o humano a um corpo sem sujeito. É útil a meu ver reler, a esse propósito, a famosa conferência de Georges Canguilhem, "O cérebro e o pensamento", na qual denuncia como uma barbárie qualquer forma de psicologia que pretendesse se apoiar na biologia e na fisiologia para afirmar que o pensamento seria apenas efeito de uma secreção do cérebro...

JD: Reações ético-jurídicas na deveriam se moelar nessa caricatura cientificista...

ER: Os partidários do que chamamos de cognitivo-comportamentalismo acreditam realmente que um dia poderemos prescindir totalmente dos conceitos de sujeito, de inconsciente e consciência...

JD: O direito ocidental é o lugar próprio, um lugar privilegiado em todo caso, da emergência e d autoridade do sujeito, do conceito de sujeito. Se ele está mantido no direito, está por toda a parte. Como extirparíamos o sujeito do direito?

ER: Como uma sobrevivência necessária para a representação do laço social. Nesse contexto, tratar-se ia de manter a existência de um sujeito da ética ou da responsabilidade, desprovido de qualquer ancoragem numa realidade psíquica, afetiva, pulsional. Isso nada tem a ver, naturalmente, com o sujeito da ética de que fala Foucault e que é um sujeito em vias de se inventar desprendendo-se de si mesmo...

* * *

JD: ... É preciso também saber que sem algum não-saber, nada acontece que mereça o nome de "acontecimento".

Jacques Derrida & Elisabeth Roudinesco, 'De que amanhã...', Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

 

 

 

miércoles, 3 de mayo de 2023

A moral (sem fundamento) - André Comte-Sponville

 

    "[É esse o sentido da] famosa formulação kantiana do imperativo categórico, nos Fundamentos da mestafísica dos costumes: 'aja unicamente de acordo com uma máxima tal que você possa querer que ela se torne uma lei universal." Isso é agir de acordo com a humanidade, em vez de conforme o seu 'euzinho querido', e obedecer à sua razão em vez de às suas tendências ou aos seus interesses. Uma ação só é boa se o princípio a que se submete (sua 'máxima') puder valer, de direito, para todos: agir moralmente é agir de tal sorte que você possa desejar, sem contradição, que todo indivíduo se submeta aos mesmos princípios que você. Isso coincide com o espírito dos Evangelhos ou com o espírito da humanidade (encontramos formulações equivalentes em outras religiões), cuja 'máxima sublime' Rousseau assim enuncia: 'Faz com os outros o que queres que os outros te façam.' Isso também coincide, mais modestamente, mais lucidamente, com o espírito da compaixão, de que Rousseau, ele de novo, nos á a fórmula 'muito menos perfeita, porém mais útil talvez que a precedente: Faz teu bem fazendo o menor mal possível aos outros'. Isso é viver, ao menos em parte, de acordo com o outro, ou antes, de acordo consigo, mas na medida em que julgamos e pensamos. 'Sozinho, universalmente...', dizia Alain. É a própria moral.
    Será preciso um fundamento para legitimar essa moral? Não é necessário, nem tem de ser possível. Uma criança está se afogando. Você precisa de um fundamento para salvá-la? Um tirano massacra, oprime, tortura... Você precisa de um fundamento para combatê-lo? Um fundamento seria uma verdade inconteste, que viria garantir o valor dos nossos valores: isso nos permitiria demonstrar, inclusive àquele que não os compartilha, que temos razão e ele não. Mas, para tanto, seria preciso fundar a razão, o que não é possível. Que demonstração sem um princípio prévio, que seria preciso demonstrar previamente? E que fundamento, tratando-se de valores, não pressupõe a própria moral que ele pretende fundar? Ao indivíduo que pusesse o egoísmo acima da generosidade, a mentira acima da sinceridade, a violência ou a crueldade acima da doçura ou da compaixão, como demonstrar que está errado e que importância daria ele a tal demonstração? A quem só pensa em si, que importa o pensamento? A quem só vive para si, que importa o universal? Quem não hesita em profanar a liberdade do outro, a dignidade do outro, por que respeitaria o princípio de não contradição? E por que, para combatê-lo, seria preciso ter primeiramente os meios para refutá-lo? O horror não se refuta. O mal não se refuta. Contra a violência, contra a crueldade, contra a barbárie, necessitamos menos de um fundamento do que de coragem. E diante de nós mesmos, menos de um fundamento do que de exigência e de fidelidade. Trata-se de não ser indigno do que a humanidade fez de cada um, e de todos nós. Por que precisaríamos, para tanto de um fundamento ou de uma garantia? Como seriam eles possíveis? A vontade basta, e vale mais."

André Comte-Sponville, Apresentação da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2002.