miércoles, 3 de mayo de 2023

A moral (sem fundamento) - André Comte-Sponville

 

    "[É esse o sentido da] famosa formulação kantiana do imperativo categórico, nos Fundamentos da mestafísica dos costumes: 'aja unicamente de acordo com uma máxima tal que você possa querer que ela se torne uma lei universal." Isso é agir de acordo com a humanidade, em vez de conforme o seu 'euzinho querido', e obedecer à sua razão em vez de às suas tendências ou aos seus interesses. Uma ação só é boa se o princípio a que se submete (sua 'máxima') puder valer, de direito, para todos: agir moralmente é agir de tal sorte que você possa desejar, sem contradição, que todo indivíduo se submeta aos mesmos princípios que você. Isso coincide com o espírito dos Evangelhos ou com o espírito da humanidade (encontramos formulações equivalentes em outras religiões), cuja 'máxima sublime' Rousseau assim enuncia: 'Faz com os outros o que queres que os outros te façam.' Isso também coincide, mais modestamente, mais lucidamente, com o espírito da compaixão, de que Rousseau, ele de novo, nos á a fórmula 'muito menos perfeita, porém mais útil talvez que a precedente: Faz teu bem fazendo o menor mal possível aos outros'. Isso é viver, ao menos em parte, de acordo com o outro, ou antes, de acordo consigo, mas na medida em que julgamos e pensamos. 'Sozinho, universalmente...', dizia Alain. É a própria moral.
    Será preciso um fundamento para legitimar essa moral? Não é necessário, nem tem de ser possível. Uma criança está se afogando. Você precisa de um fundamento para salvá-la? Um tirano massacra, oprime, tortura... Você precisa de um fundamento para combatê-lo? Um fundamento seria uma verdade inconteste, que viria garantir o valor dos nossos valores: isso nos permitiria demonstrar, inclusive àquele que não os compartilha, que temos razão e ele não. Mas, para tanto, seria preciso fundar a razão, o que não é possível. Que demonstração sem um princípio prévio, que seria preciso demonstrar previamente? E que fundamento, tratando-se de valores, não pressupõe a própria moral que ele pretende fundar? Ao indivíduo que pusesse o egoísmo acima da generosidade, a mentira acima da sinceridade, a violência ou a crueldade acima da doçura ou da compaixão, como demonstrar que está errado e que importância daria ele a tal demonstração? A quem só pensa em si, que importa o pensamento? A quem só vive para si, que importa o universal? Quem não hesita em profanar a liberdade do outro, a dignidade do outro, por que respeitaria o princípio de não contradição? E por que, para combatê-lo, seria preciso ter primeiramente os meios para refutá-lo? O horror não se refuta. O mal não se refuta. Contra a violência, contra a crueldade, contra a barbárie, necessitamos menos de um fundamento do que de coragem. E diante de nós mesmos, menos de um fundamento do que de exigência e de fidelidade. Trata-se de não ser indigno do que a humanidade fez de cada um, e de todos nós. Por que precisaríamos, para tanto de um fundamento ou de uma garantia? Como seriam eles possíveis? A vontade basta, e vale mais."

André Comte-Sponville, Apresentação da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2002.


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