martes, 8 de julio de 2008

O Homem Duplicado (José Saramago)

Atenção: Nesta entrada se conta o argumento do romance.

O homem duplicado conta a história do que aconteceu com o protagonista, Tertuliano Máximo Afonso, professor de História, quando viu num filme de vídeo, recomendado pelo seu colega de Matemáticas, um ator secundário fisicamente exato a ele. No momento decide alugar todas as fitas da produtora desse primeiro filme e investigar, pelo método da eliminação, o nome dessa pessoa. Conseguido o seu objetivo inicial, engana a sua namorada, Maria da Paz, para mandar com a sua assinatura uma carta à produtora com o propósito de conseguir uma foto, um autógrafo e o endereço de Daniel Santa-Clara, pseudônimo de António Claro.

Tertuliano Máximo Afonso descobre que António Claro mora na mesma cidade que ele, mas noutro bairro longe do seu. Talvez por isso nunca se cruzaram. Máximo Afonso não se contenta só com o que já sabe, quer saber mais. Liga para o número do ator, conta tudo e marca um encontro. Sobra dizer que António Claro fica não só surpreso, mas incrédulo. O ator indica o lugar, o dia e a hora. Vai ser na sua outra casa fora da cidade. Já no lugar, os dois podem olhar-se, examinar-se de perto, até que, inclusive, Claro resolve se despir-se. E não existe a mais mínima dúvida, os dois são iguais. Agora faltou saber quem dos dois foi o primeiro em nascer. Prévio pacto de confiança, trás duma breve, mas tensa, discussão, se falam os dias e as horas e eis: Claro nasceu antes, Máximo Afonso é a cópia. Então o ator, sentindo-se forte e superior, chantageia o professor querendo passar a noite com a sua namorada. Tertuliano Máximo Afonso, humilhado, não tem outra saída que aceitar o desafio. Mas não vai ficar sentado. Entra na casa de António Claro e dorme com a sua esposa, Helena. Mas uma tragédia fatal condiciona o final do romance: de volta para a cidade, no carro, Maria da Paz descobre a marca branca da aliança que está faltando no dedo do impostor; brigam os dois, e o sucesso acaba em acidente mortal. E agora, quem morreu? António Claro ou Tertuliano Máximo Afonso?

A imprensa publicou que o finado foi o professor de história, o que significava que Tertuliano Máximo Afonso tinha perdido sua personalidade, a sua vida toda tinha mudado para converter-se na do ator Daniel Santa-Clara, pseudônimo de António Claro. Isso é exatamente o que Helena vai lhe pedir, que seja Claro e deixe de ser Máximo. Tertuliano fica atónito.

Mas para finalizar o argumento ainda falta mais uma surpresa: toca o telefone para Daniel Santa-Clara, ou seja, para Tertuliano Máximo Afonso, e a voz de um homem igualzinha à dele lhe conta que já fazia tempo que estava à sua procura, que por impossível que possa parecer os dois são fisicamente exatos e que gostaria muito de marcar um encontro. Encontro vai ter, sim, mas dessa vez não passa. Daniel Santa-Clara, ou Tertuliano Máximo Afonso –como você goste- pega uma pistola e sai a procura do imitador.

Do ponto de vista do argumento, O homem duplicado parece um romance escrito para ser passado ao cinema rapidamente. É uma história fácil, bem contada e que guarda o interesse até o final. Mas do ponto de vista estritamente literário, o valor desta narração fica fora do narrado. Saramago atinge o seu prestígio nas digressões, quando sai da história, coloca-se de lado do leitor e dialoga com ele. Assim, por exemplo, é interessante quando o escritor reflexiona sobre os subtons, essa parte subtil –as vezes nem tanto- na fala das pessoas que habitualmente diz muito mais do que significam as simples palavras juntas que formam uma frase. E nas conversações que Tertuliano Máximo Afonso mantém com o senso comum. Certo é que o romance todo poderia ver-se como uma reflexão de baixa intensidade sobre esse senso comum que tantas vezes é o menos comum dos sentidos: «não se deixe enganar, o senso comum é demasiado comum para ser realmente senso, no fundo não passa de um capítulo da estatística, e o mais vulgarizado de todos.» Aliás, quase todas as ações que empreende o protagonista são contrárias à racionalidade. Talvez a única desculpa seja que o planejamento de partida é já inverossímil. Mesmo assim, o interesse de Máximo Afonso em procurar-se problemas é patente e, por momentos, ridículo.

Quanto ao tema do duplo, o romance de Saramago fica curto e, na minha opinião, lerdo. Mesmo que Tertuliano Máximo Afonso e António Claro sejam fisicamente idênticos, a sua vida não é nem similar. A grande confusão dos rostos, dos corpos e da voz –que, convenhamos, já é bastante- ia terminar se o criador destas personagens quisesse ouvir a sua história, o seu pensamento e os seus sentimentos. Nesse sentido, O homem duplicado é um falso romance filosófico e, sim, uma estorinha leve de enredos malucos. Respeito as semelhanças, como já se viu, basta se disfarçar. É nesse sentido que, insisto, o romance poderia dar um bom thriller de intriga.

O duplo é um tema clássico da literatura desde o seu nascimento. Só no século XIX Robert L. Stevenson, F.M. Dostoievski e Oscar Wilde escreveram, respectivamente, O estranho caso do Dr. Jeckyll e o Sr. Hyde, O duplo e O retrato de Dorian Gray (deste último existe uma belíssima tradução ao português de Clarice Lispector). Poderiam citar-se muitos mais. O que isso quer dizer é que O homem duplicado mora muito longe dos livros que no passado já falaram do tema desde uma perspectiva psicológica. Porém, não se pode dizer que o romance de Saramago seja um trabalho frustrado. Só é, sim, um trabalho menor. O leitor, ao finalizar a leitura, fica com vontade de ter visto agir Tertuliano Máximo Afonso como António Claro e vice-versa. Isso teria dado um bom jogo e motivo de reflexão. Por enquanto só podemos curtir a trama e pouco mais.
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José Saramago, O homem duplicado, Editorial Caminho, Lisboa, Novembro 2002.
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