lunes, 29 de abril de 2013

Michel Maffesoli: "O ritmo da vida"




“Depois de um período em que prevaleceram a consciência e seu papel soberano, somos obrigados a reconhecer o retorno, sob várias formas, do “pré-reflexivo”. O do mundo da vida em seu misto de ternura e crueldade. É este mundo que deve nos preocupar. Para retomar, mas uma vez, uma observação de O. Paz, existem momentos em que podemos erguer ‘torres de razões e conceitos’, e outros em que é necessário saber cavar ‘minas e galerias internas’.” (19)

“Existem, com efeito, análises que parecem irretocáveis, e talvez o sejam efetivamente, de ponto de vista formal. Mas podemos sentir, intuitivamente, tudo que têm de pré-fabricado e artificial. Estão afastadas da realidade social; logo, do essencial. É diante dessas análises institucionais que devemos submeter a razão ao teste da plasticidade do que é vivo. O que não significa aniquilá-la, mas pelo contrário, enriquecê-la. É neste ponto que convergem os grandes pensadores e o povo, sabendo ou sentindo que o que importa não é tanto a solução, mas a questão. Aqui, podemos citar Wittgenstein, para quem ‘a dificuldade não está em encontrar a solução mas em reconhecer a solução naquilo que parece ser apenas sua premissa’. Equivocamo-nos ao buscar uma explicação quando a solução da dificuldade está numa simples descrição."

“Existe aí uma sensibilidade teórica que não nos é familiar. E digo mesmo, por mais chocante que pareça a exoressão, ‘sensibilidade teórica’. Precisamente, na medida em que opera, em graus diversos, no tratado erudito, no jornalismo de opinião, nos programas políticos ou na ideologia dos diversos atores sociais. Todos são condicionados por um intelectualismo, mais ou menos reconhecido, que impede de levar em conta o instinto social. Que não permite apreender o retorno à imanência, a este ‘aqui e agora’ estruturalmente ligado à volta do sentimento trágico da vida. (...)"

“Para pensar essa efervescência, talvez devamos voltar aos autores intempestivos, poetas, filósofos ou pensadores anômicos que, como Nietzsche, exortam a ‘trazer à tona o contra-senso nas coisas humanas, sem se asustar (...) com isto fazendo avançar o conhecimento do homem’. Não do Homem em geral, próprio do universalismo ocidental, mas dos homens em particular, naquilo que têm de plural e vivo. Com efeito, é o enfoque no homem concreto e nas relações que estabelece com seus semelhantes que permite apreender ‘o que da cor à vida’ (Nietzsche).” (28-29-30)

“Existe um fio vermelho ligando ‘a economia da salvação’ cristã à economia, stricto sensu, moderna. Em todos esses casos, o que prevalece é a preocupação com a perfeição, com o bem. Bem celeste ou bem terrestre. (...) Mas as teorias de Homem em geral, assim como as que postulam a Perfeição, conduzem a um impasse. Disto dá testemunho o sentimento difuso de crise, assim como a saturação dos ‘grandes relatos de referência’. O totalitarismo economicista, o da economia da salvação individual ou ainda o do absolutismo econômico levam, de fato, a uma autêntica alienação: o Homem e os valores universais de que seria protagonista tornam o homem plural do cotidiano estranho a si mesmo. Daí a desumanização galopante que já não pode ser mascarada nem mesmo pelos patéticos apelos ao humanismo, que ressoam como ociosas encantações.” (34-35)

“A vida cotidiana não é tributária da simples razão, ou antes, esta não é a chave universal daquela. É necessário acrescentar-lhe o papel da paixão, a importância dos sentimentos compartilhados. Convém nela integrar, implicar, o jogo dos afetos, a imprevisibilidade dos humores e até o aspecto factual das ambiências, sem esquecer a repercussão que sempre terá, a longo prazo, a memória coletiva, a memória das perdas o danos que, por sucessivas sedimentações, constituíram o sentimento de pertencimento próprio do fato comunitário.” (38-39)

“Cabe lembrar que, do cristianismo nascente às teorias da emancipação do século XX, que têm em comum a busca da salvação ou, o que dá no mesmo, o projeto progressista, elaborou-se um vigoroso ‘contemptus mundi’. A partir das diversas representações de um mundo melhor, este nosso mundo está essencialmente condenado."

“É a partir dessa condenação que foram concebidas as teorias políticas de todas as cores, determinando quais deveriam ser os contornos do bem comum aplicáveis à socidadade. Lógica do ‘dever ser’, como a denominava Max Weber, que está na base do moralismo ambiente e que consiste em pensar e agir no lugar daquelos pelos quais nos declaramos responsáveis. A ortocracia política e social, própria da tecnocracia, apóia-se assim, como ja indiquei, na ortodoxia doutrinária dos burocratas do saber."

“Em seu romance Ravelstein, Saul Bellow fala dos ‘morrinhas’ ou ‘lambe-cus universitários’. Expressão talvez um pouco forte, sobretudo quando sabemos que essa parte da anatomia não deixa de proporcionar algum prazer. Mas é compreensível, se tivermos em mente o desprezo em que se especializaram. Para ficar no terreno do understatement próprio da linguagem refinada de Oxbridge, talvez não passem de urinários recalcados que, tendo perdido o sentido do prazer, vivem exclusivamente do ressentimento que projetam sobre tudo que os cerca. Não seria esta a origem de todo moralismo?” (52-53)



2 comentarios:

Rafael Bica dijo...

Interessante esse texto. Realmente os "pensadores universitários" costumam se afastar da realidade e idealizar um mundo impossível. Vários sistemas políticos já naufragaram por isso, e as religiões atuais fazem tanto mal pela mesma razão: querer "forçar" o homem a se adequar às suas teorias. Nós mesmos, em nível individual, perdemos muito tempo (às vezes toda uma vida) tentando alcançar ideais teóricos de felicidade, sem entender o que realmente pode ser conquistado.

Ah... e Saul Bellow é o próximo da minha lista. Já está aqui na cabeceira... :))

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