“Depois de um período em que prevaleceram a consciência
e seu papel soberano, somos obrigados a reconhecer o retorno, sob várias
formas, do “pré-reflexivo”. O do
mundo da vida em seu misto de ternura e crueldade. É este mundo que deve nos
preocupar. Para retomar, mas uma vez, uma observação de O. Paz, existem
momentos em que podemos erguer ‘torres de razões e conceitos’, e outros em que
é necessário saber cavar ‘minas e galerias internas’.” (19)
“Existem,
com efeito, análises que parecem irretocáveis, e talvez o sejam efetivamente,
de ponto de vista formal. Mas podemos sentir, intuitivamente, tudo que têm de
pré-fabricado e artificial. Estão afastadas da realidade social; logo, do
essencial. É diante dessas análises institucionais que devemos submeter a razão
ao teste da plasticidade do que é vivo. O que não significa aniquilá-la, mas
pelo contrário, enriquecê-la. É neste ponto que convergem os grandes pensadores
e o povo, sabendo ou sentindo que o que importa não é tanto a solução, mas a
questão. Aqui, podemos citar Wittgenstein, para quem ‘a dificuldade não está em
encontrar a solução mas em reconhecer a solução naquilo que parece ser apenas
sua premissa’. Equivocamo-nos ao buscar uma explicação quando a solução da
dificuldade está numa simples descrição."
“Existe aí
uma sensibilidade teórica que não nos é familiar. E digo mesmo, por mais
chocante que pareça a exoressão, ‘sensibilidade teórica’. Precisamente, na
medida em que opera, em graus diversos, no tratado erudito, no jornalismo de
opinião, nos programas políticos ou na ideologia dos diversos atores sociais.
Todos são condicionados por um intelectualismo, mais ou menos reconhecido, que
impede de levar em conta o instinto social. Que não permite apreender o retorno
à imanência, a este ‘aqui e agora’ estruturalmente ligado à volta do sentimento
trágico da vida. (...)"
“Para pensar
essa efervescência, talvez devamos voltar aos autores intempestivos, poetas,
filósofos ou pensadores anômicos que, como Nietzsche, exortam a ‘trazer à tona
o contra-senso nas coisas humanas, sem se asustar (...) com isto fazendo
avançar o conhecimento do homem’. Não do Homem em geral, próprio do
universalismo ocidental, mas dos homens em particular, naquilo que têm de
plural e vivo. Com efeito, é o enfoque no homem concreto e nas relações que
estabelece com seus semelhantes que permite apreender ‘o que da cor à vida’
(Nietzsche).” (28-29-30)
“Existe um
fio vermelho ligando ‘a economia da salvação’ cristã à economia, stricto sensu, moderna. Em todos esses
casos, o que prevalece é a preocupação com a perfeição, com o bem. Bem celeste
ou bem terrestre. (...) Mas as teorias de Homem em geral, assim como as que
postulam a Perfeição, conduzem a um impasse. Disto dá testemunho o sentimento
difuso de crise, assim como a saturação dos ‘grandes relatos de referência’. O
totalitarismo economicista, o da economia da salvação individual ou ainda o do
absolutismo econômico levam, de fato, a uma autêntica alienação: o Homem e os
valores universais de que seria protagonista tornam o homem plural do cotidiano
estranho a si mesmo. Daí a
desumanização galopante que já não pode ser mascarada nem mesmo pelos patéticos
apelos ao humanismo, que ressoam como ociosas encantações.” (34-35)
“A vida
cotidiana não é tributária da simples razão, ou antes, esta não é a chave
universal daquela. É necessário acrescentar-lhe o papel da paixão, a
importância dos sentimentos compartilhados. Convém nela integrar, implicar, o jogo dos afetos, a
imprevisibilidade dos humores e até o aspecto factual das ambiências, sem
esquecer a repercussão que sempre terá, a longo prazo, a memória coletiva, a
memória das perdas o danos que, por sucessivas sedimentações, constituíram o
sentimento de pertencimento próprio do fato comunitário.” (38-39)
“Cabe
lembrar que, do cristianismo nascente às teorias da emancipação do século XX,
que têm em comum a busca da salvação ou, o que dá no mesmo, o projeto
progressista, elaborou-se um vigoroso ‘contemptus
mundi’. A partir das diversas representações de um mundo melhor, este nosso
mundo está essencialmente condenado."
“É a partir
dessa condenação que foram concebidas as teorias políticas de todas as cores,
determinando quais deveriam ser os contornos do bem comum aplicáveis à
socidadade. Lógica do ‘dever ser’, como a denominava Max Weber, que está na
base do moralismo ambiente e que consiste em pensar e agir no lugar daquelos
pelos quais nos declaramos responsáveis. A ortocracia política e social,
própria da tecnocracia, apóia-se assim, como ja indiquei, na ortodoxia
doutrinária dos burocratas do saber."
“Em seu
romance Ravelstein, Saul Bellow fala
dos ‘morrinhas’ ou ‘lambe-cus universitários’. Expressão talvez um pouco forte,
sobretudo quando sabemos que essa parte da anatomia não deixa de proporcionar
algum prazer. Mas é compreensível, se tivermos em mente o desprezo em que se
especializaram. Para ficar no terreno do understatement
próprio da linguagem refinada de Oxbridge, talvez não passem de urinários
recalcados que, tendo perdido o sentido do prazer, vivem exclusivamente do
ressentimento que projetam sobre tudo que os cerca. Não seria esta a origem de
todo moralismo?” (52-53)